Cartas do esquecimento
Para vocês que sempre estão em minhas lembranças, mas acredito que nunca estive nas suas.
A casa estava sempre cheia, mas sempre vazia. Pela manhã, os meninos saíam correndo com o pai, mochilas batendo nas costas, e eu ficava na cozinha atarefada, ouvindo o portão bater. A limpeza era minha, como sempre.
Meio-dia: tudo impecável. Uma hora depois: pratos empilhados na pia, migalhas na toalha de mesa. Sexta-feira foi quando me cansei. Deixei a louça suja e fui tirar um cochilo – mas então olhei para o guarda-roupa, aquele armário que virou depósito de coisas sem dono.
"Preciso arrumar!"
Abri a porta e o cheiro de mofo me engoliu. Casacos encardidos, vestidos que usei uma vez, sapatos com sola grudenta. Quantas pessoas poderiam estar usando isso, pensei, envergonhada. Foi quando vi o envelope amarelado, meio escondido sob uma caixa de chapéus.
"Luísa, filha" – o papel tremia na minha mão.
Quando você ler isso, já deve ser grande. Espero que tenha uma família linda, que faça coisas que eu nunca pude...
A caligrafia da minha mãe, antes do Alzheimer apagar cada letra. Dobrei a carta devagar, como se ela pudesse se desfazer. Do lado de fora, um caminhão passou buzinando – o som me fez voltar àquela cozinha que nunca ficava limpa.
Estava esfregando o chão quando vi o outro papel. Um post-it velho, colocado de qualquer jeito no armário:
Mamãe,
Te amo mesmo quando você esquece.
Meu estômago embrulhou. Olhei para o relógio: 17h30. Ninguém tinha voltado. Liguei para o celular do meu marido três vezes, quatro, cinco – até que uma voz desconhecida atendeu.
— Dona Luísa, precisa de ajuda?
— Quem é você? Cadê minha família?
— Senhora, você está no Lar Feliz. Seu filho visitou no domingo, lembra?
O silêncio no telefone era tão pesado que quase dava para ouvir o tique-taque do relógio da sala. Meu relógio, pensei. Aquele de parede que ganhei de casamento.
— Cadê minha família? – gritei para aquela voz estranha, que não fazia sentido.
— Só um minuto, vou colocar ele na linha.
— Oi, Mãe? – a voz do meu filho mais velho surgiu na linha, cansada.
— Filho, que alívio! Você já voltou da escola? Cadê seu irmão?
— Mãe, nós já somos adultos, lembra? Domingo fui aí, levei bolo de chocolate e seus netos. O Pedro vai aí semana que vem.
Enquanto ele falava, olhei para o balde de água suja aos meus pés. Alguma coisa ali não fazia sentido, mas eu precisava terminar a faxina antes que todos voltassem.
— Tá bom, filho, depois eu ligo de novo – menti, desligando. Esses meninos falam cada coisa… Acho que estão na casa de algum colega. Netos? Estou ansiosa para tê-los, mas tem muito chão ainda.
— Licença, Dona Luísa? – Uma enfermeira apareceu e sorriu para mim. Devolvi o sorriso e peguei o esfregão.
— Você veio me ajudar?
— Sim, senhora.
— Então, melhor limpar logo, antes que as crianças pisem no chão molhado. As crianças estão na casa de um amigo, mas amanhã cedo elas chegam.
A enfermeira pegou minha mão, mas eu puxei de volta. Tinha que terminar a faxina. Afinal, meu marido ia chegar a qualquer momento, e ele sempre reclamava do chão sujo.
"Onde será que ele está?" pensei, esfregando com mais força. "É sexta-feira... ele sempre chega tarde às sextas."
Do canto do olho, vi a enfermeira suspirar. Ela não entendia. Ninguém entendia. Eu só queria que a casa estivesse pronta quando eles voltassem.
Esse assunto sempre me entristece. Acabo lembrando daquela frase que todo mundo diz: “a única coisa que não podem tirar de nós é o nosso conhecimento ”. É triste pensar que isso não é verdade. Apesar de tudo, continuamos, com ou sem o conhecimento, com ou sem as memórias, até que tudo vire apenas uma existência.
Obrigada pelo texto querida, você é muito sensível ♥️
Me emocionei. Minha vó tem demencia senil, é parecido. Quebra o meu coração. Me formei em neurociências e aprofundei na neurobiologia de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer. Sonho em poder fazer algo, mesmo que minúsculo, para ajudar. Lindo o texto! Nunca sei como os seus textos vão se encerrar!